Vivemos em uma época em que músicas com letras rasas, batidas repetitivas e vozes carregadas de autotune chegam facilmente ao topo das paradas. É inevitável perguntar: por que música ruim faz sucesso?
Antes de qualquer julgamento, é importante entender algo: as pessoas não se importam mais se o artista sabe cantar de verdade, se tem conhecimento musical ou se toca algum instrumento. O que vale é o produto final — aquilo que gruda no ouvido, que rende memes no TikTok ou que embala festas.
Será que a música perdeu autenticidade? Ou será que nós, ouvintes, passamos a consumir de outra forma?
O gosto mudou: emoção acima de técnica
A primeira coisa que precisamos reconhecer é que gosto musical é subjetivo. O que para uns é “ruim”, para outros pode ser “viciante” ou “divertido”.
E a verdade é que a simplicidade vende. Um estudo publicado no Royal Society Open Science mostrou que, nas últimas décadas, a música popular se tornou menos variada harmonicamente e ritmicamente. Isso não é acaso: quanto mais simples, mais fácil de ser lembrada e repetida.
Ou seja, se antes valorizávamos virtuosismo e inovação, hoje basta que uma música seja fácil de cantar e compartilhar.
Autotune: do conserto à estética
Outro fator crucial para entender por que música ruim faz sucesso é o autotune.
Originalmente criado para corrigir pequenas desafinações, ele virou um estilo próprio. T-Pain, Travis Scott e até artistas de pop mainstream transformaram a ferramenta em identidade sonora.
Mas vamos ser sinceros: muitos artistas hoje não cantam bem e usam autotune para mascarar isso. O público percebe? Sim. Mas se importa? Quase nunca. Porque o efeito digital, hoje, soa moderno e familiar.
Em outras palavras: não importa se você tem técnica vocal — importa se sua música viraliza.
Quando o sucesso é fabricado
E se eu te disser que parte do que você vê no topo das plataformas nem é reflexo de gosto popular, mas de jogo de bastidores?
Bots e streams falsos
Um estudo na França revelou que até 3% das execuções em plataformas de streaming são falsas — o equivalente a até 3 bilhões de streams manipulados em dois anos. Globalmente, isso pode significar mais de 100 bilhões de plays inflados por ano, desviando centenas de milhões de dólares de artistas reais.
Casos não faltam: em 2020, um consultor dinamarquês foi condenado a 18 meses de prisão por ganhar US$ 290 mil usando bots para inflar plays no Spotify

Playlists vendidas: a payola digital (Jabá)
Quer estar em uma playlist grande? Pague.
Primeiro vamos aos termos. Payola nada mais é do que o termo gringo para o famoso Jabá, uma espécie de suborno em que gravadoras pagavam a emissoras de rádio ou TV pela execução de determinada música de um artista. O termo payola é uma combinação de “pay” (pagamento) e “ola”, que é um sufixo de nomes de produtos comuns no início do século 20, como Pianola, Victrola, Amberola, Crayola, Rock-Ola ou Shinola. O que prova que a prática do Jabá nunca foi exclusivamente brasileira. E hoje, os jabás digitais existem.
O artigo do The Independent revelou que incluir uma música em listas populares pode custar de US$ 2.000 a US$ 10.000.
E uma investigação da Side-Line mostrou que mais de 600 curadores de playlists cobraram entre US$ 49 e US$ 280 por faixa, sem nem ouvir a música.
Discovery Mode: a versão “oficial” do jabá digital

O Spotify ainda criou o Discovery Mode, onde artistas aceitam 30% menos em royalties para ganhar mais destaque algorítmico. Ou seja: se não pode pagar por playlists, pode ceder parte da sua renda para aparecer mais.
E o público? Continua achando que esses hits chegaram lá apenas pelo “mérito”.
A era em que autenticidade perdeu valor
O mais impressionante é perceber como a ideia de autenticidade se diluiu. Antigamente, importava se o artista tinha voz, se dominava um instrumento, se compunha suas músicas. Hoje, a maioria das pessoas não se preocupa com isso.
Muitos artistas famosos não escrevem suas letras, não tocam nada, não têm conhecimento musical formal — e mesmo assim lotam arenas. Porque, no fim das contas, o que vale é: a música funciona no fone de ouvido? Faz sucesso no TikTok? Está no topo das playlists?
Se sim, então pouco importa se existe talento cru por trás.
Então, por que música ruim faz sucesso?
A resposta é complexa, mas pode ser resumida em três pontos:
- Porque é simples e emocional: músicas fáceis de lembrar e compartilhar sempre terão vantagem.
- Porque o público não cobra técnica: cantar afinado ou tocar instrumentos virou secundário diante do carisma, estética e presença digital.
- Porque o sistema é manipulado: bots, jabá digital e algoritmos decidem o que ouvimos muito mais do que escolhas orgânicas.
O gosto musical importa ou o sistema é quem manda?
No fim, a questão “por que música ruim faz sucesso?” não é só sobre gosto musical, mas sobre a forma como consumimos arte hoje.
A música deixou de ser apenas expressão artística e virou produto moldado para engajamento. Ouvimos não necessariamente o melhor, mas o que o sistema coloca diante de nós.
Talvez não seja que “o público só gosta de música ruim”, mas sim que as regras do jogo foram alteradas. E, enquanto aceitarmos passivamente o que os algoritmos entregam, continuaremos a consumir sucessos fabricados — mesmo que desafinados, artificiais ou rasos.
Felizmente há formas de burlarmos a bolha dos algoritmos e filtrarmos o que queremos ouvir. Neste artigo explico como fugir dessas bolhas.
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Fontes
- Estudo CNM (França): 1–3 % de streams são falsos
- Estimativa de até 10% de streams fraudulentos globalmente
- Caso real de fraude gerando US$ 290.000 em royalties
- Deezer: 70% dos streams de IA fraudulentos
- Payola em playlists: US$ 2.000 a US$ 10.000 para inserção
- Curadores que cobram sem ouvir música (US$ 49–280)
- Spotify Discovery Mode: 30% de royalties a menos para promoção algorítmica