O último ato da Transamérica FM
O encerramento oficial das transmissões musicais da Rádio Transamérica FM, não é meramente uma nota de rodapé na história da mídia brasileira, mas sim um epitáfio sonoro para um modelo de radiodifusão musical de massa que se tornou economicamente insustentável na era digital. Desde 1977 no ar, a Transamérica moldou gerações, sendo sinônimo de novidade e irreverência. Seu slogan clássico — “Transamérica, o ritmo da sua vida” — serviu como trilha sonora para uma era em que a rádio era o principal ponto de conexão entre o público jovem e as tendências musicais.
O que ocorreu, na verdade, foi uma capitulação pragmática. Com o avanço das plataformas digitais e a mudança radical no consumo de conteúdo, a emissora enfrentou desafios insuperáveis para manter sua relevância no cenário musical. O valor insubstituível da Transamérica como difusora de vanguarda se esvaiu no momento em que a vanguarda se instalou nos aplicativos de streaming e nas redes sociais. O público que busca tendências e novidades não está mais sintonizando; está logado.
Never Gonna give you up, foi a última música a ser executada na Transamérica.
A migração estratégica para o conteúdo contextualizado
A Transamérica deu lugar à TMC, idealizada pelo empresário João Camargo. Esta nova empreitada é descrita como uma rádio “disruptiva” que, significativamente, abandonou completamente a música para focar em jornalismo e esportes. A estratégia é clara: enquanto o streaming tornou a música um commodity de custo zero para o ouvinte e alto custo de licenciamento para a rádio, o valor do rádio tradicional migrou para o conteúdo que exige curadoria humana contínua e contexto imediato.

A nova TMC, com seu slogan “Quem escuta, sabe,” busca ser um hub de informação e debate. A contratação de colunistas e comentaristas fixos, como Daniela Lima (análise política) e Luiz Felipe Pondé (comentário cultural/filosófico), reforça o entendimento de que a sobrevivência do rádio reside naquilo que o algoritmo de recomendação musical não pode replicar: a análise humana, o debate contextualizado e a informação em tempo real.
O Rádio como guia: memória, curadoria e o poder de formar gostos
Em sua era de ouro, a rádio não era apenas um meio de transmissão; era uma instituição cultural. O radialista, o DJ ou o diretor artístico eram os gatekeepers oficiais da música, exercendo um poder estético capaz de lançar e consolidar carreiras. A curadoria musical nessas épocas era uma arte que envolvia bom senso, gosto pessoal e uma apurada interpretação do comportamento socio-musical dos ouvintes, inserindo um toque individual na seleção de faixas.
Lendas como Big Boy ou figuras que definiram nichos específicos, como Fabio Massari, que atuou como coordenador artístico e apresentador do programa Rock Report na 89 FM (A Rádio Rock), foram cruciais na difusão da música alternativa e indie nos anos 90. A Transamérica, por sua vez, foi pioneira ao apostar em tendências e revelar artistas que, até então, eram desconhecidos no Brasil, atuando como um poderoso motor de tendências comunitárias.

Para muitos, a rádio foi o veículo de popularização do Pop/Rock nacional (exemplificado por nomes como Kiko Zambianchi e RPM, que marcaram as playlists da Transamérica nos anos 80 e 90) e de gêneros internacionais como a Dance Music e o Euro Dance.
Quem aí viveu a época do programa Adrenalina e comprava os CDs?
A invasão digital: streaming, algoritmo…
A forma de consumir música no Brasil mudou irreversivelmente. Embora o rádio continue sendo um meio extremamente prevalente — com 79% da população sintonizando o rádio —, o acesso digital transformou o hábito para 38% dos ouvintes.
O streaming triunfou porque entregou ao consumidor moderno a soberania sobre o conteúdo. As plataformas digitais atendem às demandas centrais que o rádio linear não conseguia satisfazer :
- Acesso sob demanda (destacado por 54% dos entrevistados).
- Variedade de conteúdo (destacado por 52%).
- Personalização (37%) e controle da reprodução (34%).
O mercado de áudio é agora híbrido: 60% dos ouvintes de rádio tradicionais também consomem música via streaming. Essa fluidez demonstra que a audiência exige controle total sobre o que escuta, invalidando o modelo de programação linear generalista para música pop.

O algoritmo, o novo curador
Os sistemas de recomendação tornaram-se o novo DJ. O Spotify, por exemplo, é citado como o serviço que mais apresentou novas possibilidades de artistas aos usuários, superando outras plataformas e canais. Esses sistemas atuam como um mediador eficiente, desempenhando simultaneamente o papel daquele “amigo que compartilha gostos” e do “DJ de rádio”.
A tecnologia, ao desintermediar o processo, tirou o poder estético do diretor artístico da FM e o entregou a métricas de consumo e preferências individuais. No entanto, essa eficiência traz um paradoxo. Enquanto críticos como Regis Tadeu reconhecem o acesso ilimitado oferecido pelo streaming , outros apontam que a curadoria algorítmica, por focar na repetição e na familiaridade, falha em ativar o elemento “espiritual,” o “improvável” e o “invisível” que a curadoria humana e a arte oferecem. Além disso, a conveniência do acesso digital, muitas vezes, é priorizada sobre a fidelidade sonora, com o “popular” demonstrando não se importar com a alta qualidade de áudio.
A tabela a seguir sumariza a transformação no papel da seleção musical:
A Evolução da Curadoria Musical: Rádio Tradicional vs. Streaming
Característica | Rádio Tradicional | Streaming (Era do algoritmo) |
Gatekeeper/Curador Primário | DJ/Radialista (Gosto Pessoal e Institucional) | Algoritmo/Usuário (Dados de Consumo) |
Modo de Consumo | Sincronizado, Linear, Passivo | On Demand, Personalizado, Ativo (54% valorizam) |
Descoberta de Artistas | Seleção Impositiva e Comunal | Recomendação Individualizada (Spotify é o mais citado) |
Elemento de Valor | Comunidade e Referência Cultural Compartilhada | Variedade, Controle e Personalização (37% valorizam) |
A realidade econômica: o rádio no contexto multiplataforma
A TMC focará em conteúdo (jornalismo e esportes) que é mais facilmente monetizável através de patrocínios de programas e integração com vídeo. Esse tipo de conteúdo exige a característica de tempo real e interação humana que o rádio sempre ofereceu, preservando o valor do meio onde a informação e o debate precisam ser consumidos no momento da sua geração. A resiliência do rádio, que ainda é ouvido por 79% da população brasileira, não reside, portanto, em sua função de disseminador primário de música, mas sim em sua capacidade de ser um veículo de notícias e opinião de alta relevância contextual.
A adaptação inadiável: o futuro do áudio sincronizado
Se a música de massa migrou para o streaming, a curadoria humana e a voz de análise encontraram refúgio no formato podcast. A relevância dos podcasts é inegável, dado que 60% dos ouvintes de rádio consomem streaming, e metade destes afirma ter ouvido ou baixado podcasts nos últimos três meses.
O formato de áudio sob demanda (podcast/jornalismo aprofundado) satisfaz a demanda por contextualização e aprofundamento, elementos que o rádio musical rápido e superficial não oferece. Estudar o mercado americano, onde podcasts e rádio já empatam em tempo de consumo entre jovens adultos (18-29 anos), serve como um importante indicador da evolução dos hábitos de áudio no Brasil. O futuro do áudio sincronizado passa, necessariamente, pela expansão do formato talk e jornalístico para o ambiente digital, onde a curadoria especializada pode prosperar e ser monetizada.
O Rádio não morreu, sobrevive
A extinção da Transamérica não deve ser interpretada como o fim do meio Rádio, mas sim como o colapso de um formato de curadoria musical de massa. O rádio é um meio resiliente que já passou por diversas reconfigurações históricas para sobreviver.
O saudosismo pelos anos de ouro dos DJs e dos hits sincronizados é legítimo, pois representou uma experiência comunal valiosa. Contudo, essa nostalgia precisa ser produtiva, servindo para entender o que o ouvinte valoriza hoje: controle, variedade, acesso sob demanda e, acima de tudo, conteúdo que informa e contextualiza.
A nova TMC é o reconhecimento cabal de que, na era dominada pelos algoritmos e pelo consumo personalizado, a música se tornou a única coisa que uma rádio tradicional já não precisa para sobreviver. O ritmo da nossa vida agora é ditado pelo nossos dedos, na tela do telefone, e não mais pela imposição das frequências. O rádio tradicional, que ditava o que era relevante ouvirmos, morreu; ele agora é multifacetado e irremediavelmente adaptado.
E você? Ainda ouve música pelo rádio ou só pelo streaming?
Valeu, Transamérica!
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