Em um passado não tão distante, a experiência de ouvir uma música cativante no rádio, em uma loja ou em um café e não conseguir identificá-la era uma frustração universal. Era preciso torcer para que o locutor anunciasse o nome da canção ou tentar memorizar um trecho da letra para uma busca manual posterior, muitas vezes infrutífera. Em um cenário onde a música era efêmera e o acesso à informação, limitado, a pergunta “Que música é essa?” parecia, em muitos casos, fadada a ficar sem resposta.
Foi a partir dessa simples e recorrente frustração que surgiu uma ideia que, à primeira vista, parecia improvável. Um serviço capaz de ouvir uma melodia e, em questão de segundos, revelar seu título, artista e até a letra. O que antes era uma busca laboriosa se transformou em um simples toque na tela do telefone uma ação que, hoje, já foi executada bilhões de vezes por milhões de usuários. O Shazam, o aplicativo que tornou essa “mágica” possível, não se baseia em adivinhação, mas sim em um algoritmo de engenharia brilhante. A seguir, desvendaremos não apenas a história fascinante por trás dessa inovação, mas, principalmente, o cérebro que a impulsiona.
O início de tudo: uma história que não cabia no telefone
A Ideia Frustrada e os Fundadores Visionários
A história do Shazam começou em 1999, com um problema cotidiano enfrentado por dois amigos, Chris Barton e Dhiraj Mukherjee, em Londres. Eles queriam uma maneira de identificar as músicas que ouviam no rádio. A ideia evoluiu para um modelo de negócio no qual, ao fazer parceria com estações de rádio, eles poderiam identificar as músicas e vendê-las aos ouvintes. A essa equipe, juntaram-se Philip Inghelbrecht e Avery Wang. A chegada de Wang, um estudante de doutorado na Universidade de Stanford com especialização em processamento de sinal digital, foi o momento crucial. Ele era a peça-chave que poderia transformar a visão em realidade, e o algoritmo mundialmente aclamado do serviço é uma de suas criações.

Eles decidiram estabelecer a empresa em Londres em vez de na Califórnia, que já era o “eldorado” para startups. A razão para a escolha? A rede móvel na Europa estava mais desenvolvida do que nos Estados Unidos na época. No entanto, a tecnologia ainda estava em seus primórdios. O Shazam não era um aplicativo de smartphone, mas sim um serviço telefônico. O processo era peculiar: o usuário ligava para um número dedicado, o “2580” no Reino Unido, segurava o telefone perto da fonte do som e aguardava. Após alguns segundos, o serviço enviava uma mensagem de texto (SMS) com o nome da música e o artista. Cada chamada custava 50 centavos, que eram adicionados à conta telefônica.
A Revolução do Smartphone e a Virada do Jogo
O mercado não estava maduro para a tecnologia do Shazam. A empresa enfrentou inúmeros desafios, e o conceito de startup era, para muitos, inviável na época. A receita da empresa vinha principalmente de investimentos externos, e os fundadores, apesar de convencidos, consideraram desistir diversas vezes. Dhiraj Mukherjee chegou a estimar a probabilidade de adoção do Shazam em apenas 4%.
Tudo mudou em 2008 com o lançamento do iPhone e da App Store. O Shazam foi um dos primeiros aplicativos a serem disponibilizados, e essa estreia marcou uma verdadeira revolução. O que antes era um serviço complexo, com uma experiência de usuário rudimentar, se transformou em uma ferramenta popular e acessível. O modelo de negócio também se adaptou. Com a integração com plataformas como o iTunes, a empresa passou a gerar receita por meio de publicidade e vendas afiliadas, garantindo sua independência financeira. A transformação do Shazam de um serviço de ligação paga para um aplicativo gratuito para smartphones é um exemplo clássico de como a tecnologia e a infraestrutura de hardware influenciam diretamente o modelo de negócio e o sucesso de uma empresa. A capacidade de fornecer uma experiência de usuário simples e instantânea, que antes era limitada pela tecnologia móvel, foi o fator decisivo para a escalabilidade e o fenômeno global em que o Shazam se tornou.
O Cérebro do Shazam: Desvendando o Algoritmo Mágico
A grande pergunta que ainda intriga a maioria dos usuários é: como o aplicativo consegue essa façanha? A resposta está no algoritmo desenvolvido por Avery Wang, uma técnica que se tornou referência e é citada em artigos acadêmicos como um exemplo relevante de identificação. O processo é uma combinação de engenharia de software e processamento de sinal digital.
A Impressão Digital da Música
O primeiro passo para entender o Shazam é abandonar a ideia de que o aplicativo compara a música inteira. Em vez disso, ele cria uma “impressão digital acústica” — um resumo digital condensado do áudio. A analogia é clara e precisa: assim como a impressão digital de uma pessoa é única e permite sua identificação mesmo com pequenas variações ou sujeira, a impressão digital de uma música é robusta o suficiente para tolerar ruídos de fundo, distorção, chiado ou compressão de áudio, como os que ocorrem quando uma música é tocada em um ambiente barulhento. O Shazam não está procurando uma correspondência binária perfeita; está buscando uma semelhança perceptiva, ou seja, se dois arquivos soam parecidos para o ouvido humano, suas impressões digitais acústicas devem ser compatíveis, mesmo que suas representações digitais sejam muito diferentes.
O Mapa Estelar: A Criação do Espectrograma
Quando você ativa o Shazam, o aplicativo grava um pequeno segmento da música que está tocando, geralmente entre 10 e 20 segundos. Este áudio analógico é então traduzido em uma representação visual chamada espectrograma, que é a peça-chave para o reconhecimento musical. O espectrograma é um gráfico tridimensional. O eixo x representa o tempo, o eixo y representa a frequência (o tom da música) e o eixo z (geralmente a densidade ou intensidade da cor) marca a amplitude ou energia do som. Pense neste gráfico como um “mapa estelar” da música, onde as constelações mais brilhantes são os momentos de maior energia sonora.

O Pulo do Gato: Identificando os Pontos de Referência
A genialidade do algoritmo do Shazam não está em analisar cada detalhe do espectrograma, mas em ignorar a maioria deles. A abordagem de Avery Wang consiste em focar apenas nos “picos de intensidade”, que são as frequências que se destacam e contêm mais energia em momentos específicos. Focar nesses picos torna o algoritmo incrivelmente resistente a ruídos de fundo, como vozes e outros sons, pois esses picos proeminentes são os menos suscetíveis a serem afetados por distorções. Esses picos funcionam como “pontos de referência” ou “marcos” únicos para a música.
A tecnologia do Shazam não é mágica por ser complexa, mas sim por ser elegantemente simples. A intuição comum sugere que a identificação de uma música em um ambiente ruidoso exigiria uma análise detalhada e complexa de cada nota e nuance. No entanto, o algoritmo do Shazam faz exatamente o oposto: ele ignora quase tudo, focando apenas nos dados mais robustos e significativos. O resultado é uma “impressão digital” que é uma simplificação drástica do áudio original, tornando o processo computacionalmente eficiente e, ao mesmo tempo, inerentemente resistente a perturbações. A verdadeira inovação, portanto, reside na subtração, e não na adição de complexidade.
A Busca Relâmpago: Hashing Combinatório em Ação
A identificação de um único pico não seria suficiente para diferenciar uma música de milhões de outras. Para aumentar a unicidade da impressão digital e acelerar a busca, o Shazam utiliza uma técnica chamada “hashing combinatório”. Em vez de usar um único pico, o algoritmo cria
pares de picos. Um ponto de intensidade é escolhido como “ponto-âncora”, e é então pareado com outros picos localizados em uma “zona de destino” pré-determinada no espectrograma. Cada par de pontos gera um “hash”, que é uma combinação da frequência de ambos os picos e a diferença de tempo entre eles.
Esses hashes são então armazenados em um vasto banco de dados, onde cada hash é vinculado ao tempo de início da música original. Quando o usuário faz um “shazam” de uma música, a impressão digital gerada é enviada aos servidores, que realizam uma busca ultrarrápida no banco de dados para encontrar correspondências de hashes. A busca é exponencialmente mais rápida, pois a combinação de múltiplos pontos é extremamente única. O tempo de busca é proporcional ao logaritmo do número de entradas no banco de dados, permitindo que a identificação seja feita em poucos segundos, mesmo com um banco de dados gigantesco. Essa técnica de hashing combinatório não apenas torna a busca incrivelmente rápida, mas também confere ao algoritmo uma propriedade incomum: a “transparência”, que permite identificar múltiplas faixas misturadas tocando ao mesmo tempo.

Essa tecnologia de “audio fingerprinting” é tão robusta e versátil que suas aplicações vão muito além da descoberta musical de consumo. O algoritmo de Wang pode ser usado para monitoramento de direitos autorais em rádio e TV, identificação de músicas por trás de locuções em comerciais, e até mesmo para indexação de conteúdo em grandes bibliotecas digitais. A capacidade de identificar músicas re-gravadas, versões cover e até mesmo plágio musical demonstra que a tecnologia não vende apenas um aplicativo, mas uma solução de reconhecimento de áudio com um vasto potencial comercial.
Do Telefone à Aquisição pela Apple: A Jornada do Gigante Musical
A Ascensão e a Conquista do Mercado
Com a popularização dos smartphones, o Shazam se tornou um aplicativo onipresente. Em 2011, o serviço já havia ultrapassado a marca de 1 bilhão de músicas reconhecidas. A empresa expandiu suas capacidades, permitindo a identificação não apenas de músicas, mas também de comerciais e programas de TV. A integração com a Siri em 2014 foi um passo importante, tornando a identificação musical uma funcionalidade nativa do ecossistema Apple.
A Compra Estratégica pela Apple
Após anos de colaboração e uma valorização que chegou a 1 bilhão de dólares em 2015 , a Apple confirmou a aquisição do Shazam em 2018, por um valor estimado em 400 milhões de dólares. A negociação demorou por conta de processos burocráticos envolvendo a União Europeia. Oliver Schusser, vice-presidente da Apple Music, declarou que a aquisição tinha como objetivo “oferecer ainda mais maneiras de descobrir, experimentar e aproveitar a música”.
A aquisição do Shazam pela Apple é um exemplo fascinante de estratégia de negócios. A Apple já possuía uma funcionalidade de reconhecimento musical com a Siri e, portanto, não estava comprando uma tecnologia única. O valor real para a gigante de Cupertino não residia apenas no código, mas em um ativo muito mais valioso: a marca, o hábito do usuário e, principalmente, os dados. O Shazam era sinônimo de “descoberta musical” e tinha um vasto banco de dados de hábitos e preferências de milhões de usuários. A aquisição permitiu à Apple integrar o serviço de forma transparente em seu ecossistema, eliminando a necessidade de um aplicativo de terceiros e removendo os anúncios, alinhando a experiência do Shazam com a filosofia da empresa. Assim, a compra foi um movimento estratégico para consolidar seu ecossistema musical e aprimorar o Apple Music, ao invés de uma mera aquisição de tecnologia.

O Legado e o Futuro da Descoberta Musical
O Shazam, de um serviço telefônico rudimentar a um aplicativo onipresente, se tornou um elo indispensável entre o mundo físico e o vasto universo digital da música. A empresa, fundada por uma ideia simples, soube persistir através de um mercado imaturo e, por fim, adaptar sua tecnologia e seu modelo de negócio com a ascensão dos smartphones. O legado do Shazam vai além de sua funcionalidade; a sua “mágica” serviu como um catalisador para a venda de músicas, shows e a interação entre artistas e fãs.
O que parece ser um ato de adivinhação é, na realidade, o resultado de uma engenharia brilhante. A genialidade do algoritmo de Avery Wang está na sua simplicidade elegante, na capacidade de filtrar o ruído e focar em dados robustos para criar uma impressão digital única e, assim, realizar uma busca quase instantânea em um banco de dados de proporções épicas. Com a aquisição pela Apple, o Shazam não apenas consolidou sua posição, mas se tornou uma parte fundamental do ecossistema de uma das maiores empresas de tecnologia do mundo. Mais do que uma ferramenta de descoberta musical, o Shazam é um testemunho da visão, da persistência e do poder de um algoritmo bem pensado para resolver um problema da grande maioria das pessoas.
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Fontes:
- Como o Shazam consegue identificar uma música em menos de 10 segundos? – TecMundo https://www.tecmundo.com.br/software/122915-shazam-consegue-identificar-musica-10-segundos.htm
- Shazam: músicas e shows – Apps no Google Play https://play.google.com/store/apps/details?id=com.shazam.android&hl=pt
- Shazam atinge 100 bilhões de reconhecimentos de músicas – Apple (BR) https://www.apple.com/br/newsroom/2024/11/shazam-hits-100-billion-song-recognitions/
- Como o Shazam alcançou 100 bilhões de canções reconhecidas – Nexo Jornal, https://www.nexojornal.com.br/expresso/2024/11/23/shazam-100-bilhoes-musicas-reconhecidas
- Who invented Shazam and how does it work? – Soundiiz Blog https://soundiiz.com/blog/who-invented-shazam-and-how-does-it-work/
- Why did Apple spend $400M to acquire Shazam? – AppleInsider https://appleinsider.com/articles/18/09/25/why-did-apple-spend-400m-to-acquire-shazam
- How Does Shazam Make Money? The Shazam Business Model In A Nutshell – FourWeekMBA https://fourweekmba.com/how-does-shazam-make-money/
- Sistema computacional auxilia músicos a planejar ações de divulgação – Agência FAPESP, https://agencia.fapesp.br/sistema-computacional-auxilia-musicos-a-planejar-acoes-de-divulgacao/23768
- O App Shazam deixou o mundo muito mais musical – MobDica, https://mobdica.com/musica/o-app-shazam-deixou-o-mundo-muito-mais-musical/
- Desvendando o Reconhecimento Musical: Como o Shazam Identifica Canções em Segundos – TrendNerd, https://trendnerd.com.br/desvendando-o-reconhecimento-musical-como-o-shazam-identifica-cancoes-em-segundos/
- How Does Music Recognition Work With Shazam app | TechAhead, https://www.techaheadcorp.com/blog/decoding-shazam-how-does-music-recognition-work-with-shazam-app/
- Como é que o Shazam reconhece quase todas as músicas? – Pplware – SAPO https://pplware.sapo.pt/high-tech/como-e-que-o-shazam-reconhece-quase-todas-as-musicas/
- Audio fingerprinting — what is it and why is it useful? | by Chirp – Medium https://medium.com/chirp-io/audio-fingerprinting-what-is-it-and-why-is-it-useful-33c6cc6bc302